sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

CONDUTAS RELACIONADAS A MERCADORIAS PENALIZADAS COM PERDIMENTO PODEM SER ENQUADRADAS COMO TENTATIVA DE DESCAMINHO

Autor(a): ALEXANDRE DUARTE BARBOSA SANTIAGO
Auditor Fiscal da RFB, com atuação na área aduaneira; bacharel em ciências náuticas e habilitado em Administração pela Escola Naval

Antes de adentrar no assunto em questão, há que se admitir que a intenção do autor deste artigo não é, de maneira nenhuma, afrontar entendimentos de juristas renomados, mas, sim, provocar um ambiente propício para um debate saudável acerca do assunto, até porque sua formação é calcada em ciências exatas, daí as impressões aqui expostas possuírem um caráter um tanto cartesiano, baseadas em suas experiências como Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil atuando na área aduaneira. Trata-se da situação extremamente polêmica sobre a tipificação do crime de descaminho estatuído pelo artigo 334 do Código Penal nas situações em que é decretada a penalidade administrativa de perdimento de mercadorias, sobretudo quando juristas bastante competentes em direito tributário e penal emitem pareceres que, possivelmente, serão absorvidos pela doutrina.
A alegação trazida por parte dos doutrinadores reside no fato de que o crime de descaminho é espécie do gênero sonegação fiscal, cujos delitos estão previstos pelo artigo 1º da Lei nº 8.137/90, por isso merecem aplicação da Súmula Vinculante 24 do STF, abaixo reproduzida.
Não se tipifica  crime  material contra a ordem tributária,  previsto no  art. 1º,  incisos I  a IV,  da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.
Prosseguem com seu entendimento de que os tributos não incidem nas importações de mercadorias objeto da pena de perdimento por expressa disposição legal (Regulamento Aduaneiro, arts. 71, inciso III, 238 e 250), razão pela qual não se caracteriza o núcleo do tipo penal "iludir no todo ou em parte, pagamento de direito ou imposto devido pela entrada ou saída".
Impossível prosseguir no assunto sem antes elaborar uma breve remissão sobre os procedimentos anteriores necessários para a realização de uma operação de importação. O importador, na maioria das vezes representado por um despachante aduaneiro a partir do momento da entrada da carga em território nacional, entra em contato com o exportador para acertar os termos do negócio, tais como modalidade de pagamento, Incoterms (regras/cláusulas de responsabilidade de contrato e direito do importador, desde a saída do estabelecimento do remetente até a chegada ao destinatário), prazo de entrega, preço, entre outros. Tanto um quanto outro podem eleger um agente de carga no exterior, que terá seu correspondente em território nacional no intuito de coordenarem entre si a logística da carga, responsável pela preparação e consolidação da mercadoria para seu embarque, ocasião que será expedido o conhecimento de carga pelo transportador internacional, também executor do registro da informação da existência da referida carga no sistema apropriado e posterior entrega da mercadoria ao depositário. A fatura, outro documento obrigatório e em que todas as condições acordadas entre ambas as partes deverão estar registradas, também deve ser expedida pelo exportador e encaminhada juntamente ou não com a carga (normalmente, estará anexada a ela, pois os custos de armazenagem estarão sendo contabilizados até a chegada do documento). Abaixo, apresento o fluxo da carga de maneira lúdica.
Aduz, ainda, o artigo 542 do Regulamento Aduaneiro que "Despacho de importação é o procedimento mediante o qual é verificada a exatidão dos dados declarados pelo importador, aos documentos apresentados e à legislação específica". Em outras palavras, é no despacho aduaneiro que o Siscomex parametrizará a declaração registrada pelo despachante ou pelo próprio importador para, a seguir, dependendo do canal de conferência, ser distribuída ao fiscal, ou sofrer desembaraço automático. Ressalte-se que o fluxo do despacho segue a mesma lógica independentemente do regime especial aduaneiro a que a carga estiver submetida, exceção feita somente a dois pequenos pontos na hipótese de estar sendo registrada uma DSI (Declaração Simplificada de Importação) . O esquema elencado encontra-se ilustrado na página oficial da Receita Federal no endereço: http://www.receita.fazenda.gov.br/manuaisweb/importacao/topicos/conceitos_e_definicoes/etapas_do_despacho_aduaneiro_de_importacao/.
Sem essa compreensão sobre a logística básica da carga e de sua documentação, estaremos diante de uma visão parcial da realidade ao desconsiderar todas as condutas anteriores ao despacho aduaneiro e algumas inerentes a esse procedimento.
A partir dessas explicações, faz-se necessário ilustrar algumas situações fáticas, a fim de demonstrar a tese aqui defendida. O despachante preenche seus campos e registra a DI com base na documentação fornecida pelo importador. Caso a fatura usada por aquele não seja condizente com a fornecida pelo exportador e que os preços das mercadorias estejam, digamos, 80% abaixo do valor real, apuraremos uma base de cálculo e, consequentemente, uma sonegação fiscal na ordem de 400%. Digamos que, em ato de conferência física da carga, o fiscal encontre o documento emitido pelo exportador. Ele não terá alternativa senão aplicar a penalidade de perdimento da mercadoria, consoante disposto no artigo 689, inciso VI, do Regulamento Aduaneiro, e calculará o montante dos tributos sonegados, que poderão ser indicados no Auto de Infração de Perdimento. Ora, não seria o caso de TENTATIVA DE DESCAMINHO? A conclusão a que me refiro é fundamentada pelas seguintes argumentações.
As etapas para atingir a realização de um delito dividem-se em quatro: cogitação, preparação, execução e consumação. A primeira não é penalizada, pois a disposição do agente em delinquir encontra-se apenas em sua mente. A segunda pode vir a ser sancionada, se as condutas praticadas em seu âmbito possuírem tipificação criminal. A terceira encontra-se dentro dos limites das imputações penais. A quarta e última consiste em mera consecução do resultado previsto pelo agente.
Voltemos, agora, à situação fática anteriormente descrita. O agente praticante do delito (importador), embora ciente da existência da fatura original, ao entregar a inverossímil ao despachante, independentemente de incidir em outros tipos penais, atenta contra o bem jurídico tutelado pelo artigo 334, qual seja o erário público, tanto é assim que essa conduta é considerada dano ao erário, hipótese prevista em lei para a aplicação da penalidade administrativa de perdimento da mercadoria. A partir do momento em que o fiscal descobre a fraude e lavra o Auto de Infração de Perdimento anexado em processo administrativo fiscal específico, que terá seu rito diferenciado (artigo 27 do Decreto-Lei nº 1.455/1976) em relação àquelas regras estipuladas pelo artigo 1º da Lei nº 8.137/1990 (Decreto nº 70.235/1972), estará caracterizada não só uma situação em que as três primeiras fases do inter criminis restarão evidenciadas, como também a impossibilidade de sua consumação por fatores alheios à vontade do agente, portanto qualificada sua tentativa .
O elemento objetivo do tipo penal (verbo, elementos descritivos, elementos valorativos) do delito estaria definido pelo próprio Auto de Infração de Perdimento, que indicaria o montante exato dos tributos sonegados, comprovando a materialidade da tentativa do crime.
Portanto, se os valores iludidos puderem ser calculados, a autoridade aduaneira deve representar ao Ministério Público Federal o crime de descaminho na modalidade tentada, observadas as regras da Portaria RFB nº 2.439/2010.

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